A metafísica pareceu-me sempre uma forma prolongada da loucura latente. Se conhecêssemos a verdade, vê-la-íamos; tudo (o) mais é sistema e arredores. Basta-nos, se pensarmos, a incompreensibilidade do universo; querer compreendê-lo é ser menos que homens, porque ser homem é saber que se não compreende.
Trazem-me a fé como um embrulho fechado numa salva alheia. Querem que o aceite, mas que o não abra. Trazem-me a ciência, como uma faca num prato, com que abrirei as folhas de um livro de páginas brancas. Trazem-me a dúvida, como pó dentro de uma caixa; mas para que me trazem a caixa se ela não tem senão pó?
Na falta de saber, escrevo; e uso os grandes termos da Verdade. Alheios conforme as exigências da emoção. Se a emoção é clara e fatal, falo, naturalmente, dos Deuses, e assim a enquadro numa consciência do mundo múltiplo. Se a emoção é profunda, falo, naturalmente, de Deus, e assim a engasto numa consciência una. Se a emoção é um pensamento, falo, naturalmente, do Destino, e assim a encosto à parede.
Umas vezes o próprio ritmo da frase exigirá Deus e não Deuses: outras vezes impor-se-ão as duas sílabas de Deuses e mudo verbalmente de universo; outras vezes pesará o contrário, as necessidades de uma rima íntima, um deslocamento do ritmo, um sobressalto de emoção e o politeísmo ou o monoteísmo amolda-se e prefere-se. Os Deuses são uma função do estilo.
6-5-1930
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II.
Fernando Pessoa.
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